Estudo da JAMA sobre Paracetamol e Autismo: conflitos de interesse e associações erradas

AUTISMO

Um estudo publicado recentemente no JAMA tenta desfazer a associação entre o uso de acetaminofeno durante a gravidez e o risco de autismo, TDAH e deficiência intelectual. Entretatnto, o estudo apresenta várias inconsistências que devem ser destacadas, identificando-as nos dados apresentados e nas análises realizadas em relação à conclusão de que o uso de acetaminofeno durante a gravidez não está associado ao risco de autismo, TDAH ou deficiência intelectual.

19/05/2024

Dra Tielle Machado

Falhas metodológicas, associações questionáveis e conflito de interesse no estudo observacional que tenta desvincular o uso de Paracetamol dos riscos de Autismo e TDAH

▪️ Modelos sem controle de irmãos mostraram associações significativas:

O uso de acetaminofeno durante a gravidez foi associado a um aumento marginal nos riscos de autismo (HR 1.05, IC 95% 1.02-1.08), TDAH (HR 1.07, IC 95% 1.05-1.10) e deficiência intelectual (HR 1.05, IC 95% 1.00-1.10). Estes achados não podem ser simplesmente descartados sem uma consideração cuidadosa.


  • Nos modelos sem controle de irmãos, o uso de acetaminofeno durante a gravidez foi associado a um aumento marginal no risco de autismo (HR 1.05, IC 95% 1.02-1.08), TDAH (HR 1.07, IC 95% 1.05-1.10) e deficiência intelectual (HR 1.05, IC 95% 1.00-1.10).
  • Já nos modelos com controle de irmãos, essas associações não foram encontradas (autismo: HR 0.98, IC 95% 0.93-1.04; TDAH: HR 0.98, IC 95% 0.94-1.02; deficiência intelectual: HR 1.01, IC 95% 0.92-1.10).
  • Inconsistência: A diferença significativa entre os resultados dos dois tipos de análise sugere que a conclusão final pode estar subestimando o risco identificado nos modelos sem controle de irmãos. A ausência de associação nos modelos com controle de irmãos não invalida completamente as associações observadas nos outros modelos.


Um aumento marginal de risco significa que há uma ligeira elevação na probabilidade de desenvolver essas condições em comparação com aqueles não expostos ao acetaminofeno. Por exemplo, um HR (hazard ratio) de 1.05 para autismo indica um aumento de 5% no risco em comparação com o grupo não exposto. Mesmo que esse aumento pareça pequeno, em populações grandes, ele pode representar um número significativo de casos adicionais.


▪️ Controle de irmãos dilui associações:

Nos modelos com controle de irmãos, nenhuma associação significativa foi encontrada (autismo: HR 0.98, IC 95% 0.93-1.04; TDAH: HR 0.98, IC 95% 0.94-1.02; deficiência intelectual: HR 1.01, IC 95% 0.92-1.10). Isso sugere que os fatores familiares e genéticos podem estar mascarando os efeitos reais do acetaminofeno.

Controle de irmãos significa comparar crianças expostas e não expostas dentro da mesma família. Isso ajuda a controlar fatores genéticos e ambientais que podem influenciar os resultados. A falta de associações significativas nestes modelos pode indicar que outros fatores, além do acetaminofeno, estão contribuindo para os riscos observados. No entanto, isso não descarta completamente um efeito potencial do acetaminofeno.

▪️ Análise de dose-resposta sem padrão claro:

A ausência de um padrão claro de dose-resposta no controle de irmãos (HRs para autismo de 0.85, 0.96, e 0.88 para uso baixo, médio e alto, respectivamente) não elimina a possibilidade de efeitos adversos, especialmente quando outros estudos indicam associações positivas.


  • A análise de dose-resposta no controle de irmãos não mostrou um padrão claro (HRs para autismo: 0.85, 0.96, 0.88 para baixo, médio e alto uso, respectivamente).
  • Inconsistência: A ausência de um padrão dose-resposta claro não necessariamente implica ausência de efeito, mas pode sugerir que outros fatores não medidos estão influenciando os resultados.


Uma análise de dose-resposta busca ver se maiores doses do medicamento resultam em maiores riscos. A ausência de um padrão claro pode sugerir que não há relação direta entre a quantidade de acetaminofeno e o aumento dos riscos. No entanto, isso pode ser devido a limitações no estudo ou variabilidade nos dados, não necessariamente a ausência de risco.

▪️ Subestimação dos riscos absolutos (RD):

Embora os riscos absolutos sejam pequenos, mesmo diferenças pequenas (autismo: 0.09%, TDAH: 0.21%, deficiência intelectual: 0.04%) podem ser clinicamente relevantes em grandes populações.


  • Nos modelos sem controle de irmãos, os RD para autismo (0.09%), TDAH (0.21%) e deficiência intelectual (0.04%) são todos positivos, embora pequenos.
  • Nos modelos com controle de irmãos, os RD são muito pequenos ou negativos, sugerindo nenhuma diferença significativa (autismo: 0.02%, TDAH: -0.02%, deficiência intelectual: 0%).
  • Inconsistência: Mesmo pequenas diferenças absolutas podem ser clinicamente relevantes, especialmente em populações grandes.


Risco absoluto refere-se à chance real de desenvolver uma condição. Por exemplo, um aumento de 0.09% no risco absoluto de autismo pode parecer insignificante, mas em uma população de milhões, isso representa muitas crianças adicionais afetadas. Pequenas mudanças nos riscos absolutos podem ter grandes implicações de saúde pública.

▪️ Intervalos de Confiança (IC):

  • Os intervalos de confiança nos modelos sem controle de irmãos são relativamente estreitos e todos acima de 1, indicando uma associação positiva, mesmo que marginal.
  • Nos modelos com controle de irmãos, os intervalos de confiança incluem 1, indicando nenhuma associação significativa.
  • Inconsistência: A sobreposição de ICs e a proximidade dos valores dos HRs entre os dois modelos (com e sem controle de irmãos) indicam que pode haver um efeito real que está sendo obscurecido pelo ajuste para confounding familiar.

▪️ Ignorância das meta-análises e estudos anteriores:

Várias revisões sistemáticas e meta-análises robustas indicam consistentemente um aumento no risco de transtornos do neurodesenvolvimento associado ao uso de acetaminofeno durante a gravidez. Ignorar essas evidências é imprudente e desrespeitoso com o consenso científico atual.

  • A conclusão do estudo afirma que "acetaminofeno durante a gravidez não está associado ao risco de autismo, TDAH ou deficiência intelectual em análise com controle de irmãos".
  • Inconsistência: Esta conclusão desconsidera as associações observadas nos modelos sem controle de irmãos e não discute adequadamente as limitações e potenciais fontes de viés que poderiam estar presentes mesmo no controle de irmãos.


Meta-análises agregam dados de múltiplos estudos para fornecer uma visão mais robusta das evidências. Ignorar estas análises é negligente, pois elas representam o nível mais alto de evidência científica, consolidando resultados de diversas pesquisas para fornecer conclusões mais confiáveis.

Possível Conflito de Interesse no Estudo da JAMA

▪️ Um Olhar Crítico sobre o Karolinska Institute

Os autores do estudo publicado no JAMA sobre paracetamol e autismo têm várias associações com o Karolinska Institute. Esta renomada instituição de pesquisa médica tem, por sua vez, uma longa história de relações com a indústria farmacêutica, levantando questões sobre a imparcialidade e a integridade de suas pesquisas.


Por exemplo, o instituto frequentemente recebe financiamento para pesquisas de grandes empresas farmacêuticas, como AstraZeneca, o que pode influenciar os focos de pesquisa e os resultados obtidos.

▪️ Conexões dos Autores com o Karolinska Institute

Os seguintes autores do estudo estão associados ao Karolinska Institute:

▪️ Escândalos Envolvendo o Karolinska Institute


Caso Paolo Macchiarini:

  • Contexto: Paolo Macchiarini foi contratado pelo Karolinska Institute em 2010 e posteriormente se envolveu em graves acusações de má conduta científica. As investigações revelaram falhas sistêmicas na supervisão e na gestão de suas pesquisas, resultando na demissão de altos executivos do instituto.
  • Consequências: O escândalo afetou gravemente a reputação da instituição e expôs a necessidade de reformas internas para garantir a integridade da pesquisa.


Caso Kenneth Chien:

  • Conexões com a Indústria Farmacêutica: Kenneth Chien, contratado em 2013, tinha fortes laços com a indústria farmacêutica, incluindo ser cofundador da Moderna Therapeutics e conselheiro da AstraZeneca. Essa relação levantou preocupações sobre a independência das pesquisas, especialmente devido ao financiamento substancial de suas atividades pela AstraZeneca​.

Viktor H. Ahlqvist, PhD

Associado ao Karolinska Institute, que colabora com a indústria farmacêutica em várias pesquisas e recebe financiamento do NIH

Hugo Sjöqvist, MSc

Ligado ao Karolinska Institute, conhecido por parcerias com empresas farmacêuticas e apoio do NIH

Christina Dalman, MD, PhD

Trabalha no Karolinska Institute, que recebe financiamento significativo de instituições farmacêuticas

Håkan Karlsson, PhD

Pesquisador no Karolinska Institute, com possíveis colaborações com a indústria farmacêutica

Olof Stephansson, MD, PhD

Associado ao Karolinska Institute e financiado pelo NIH, envolvido em pesquisas com potenciais conflitos de interesse

Stefan Johansson, MD, PhD

Pesquisador no Karolinska Institute, com apoio financeiro do NIH e possíveis colaborações com a indústria farmacêutica

Cecilia Magnusson, MD, PhD

Ligada ao Karolinska Institute, que colabora com a indústria farmacêutica e recebe financiamento significativo do NIH

Renee M. Gardner, PhD

Trabalha no Karolinska Institute, conhecido por suas colaborações com empresas farmacêuticas e apoio do NIH

▪️ Possível Conflito de Interesse

Dado o histórico do Karolinska Institute e suas conexões estreitas com a indústria farmacêutica, é plausível considerar que possa haver um possível conflito de interesse nos resultados e conclusões do estudo publicado no JAMA sobre paracetamol e autismo. O paracetamol (ou Tylenol) é um dos medicamentos mais largamente vendidos pela indústria farmacêutica, e a influência de financiamentos de grandes empresas pode comprometer a imparcialidade das pesquisas.


Embora não possamos afirmar categoricamente que houve um conflito de interesse, as conexões e o histórico do Karolinska Institute com a indústria farmacêutica sugerem a necessidade de uma análise crítica dos resultados apresentados. É essencial que os leitores e a comunidade científica considerem essas possíveis influências ao avaliar as conclusões do estudo sobre paracetamol e autismo.


O problema quando estudos publicados são “analisados” por quem não é da área:

O problema de pessoas que não são médicas analisarem estudos e divulgarem suas observações para a população em geral, como se fossem especialistas nesses assuntos, não é simplesmente o fato de não serem médicos.


O grande problema que vejo é que essas pessoas fazem essas análises de forma fria, sem considerar a realidade do contexto clínico de um paciente. Um estudo não consegue captar a complexidade do que vemos na prática clínica, onde o paciente é, na verdade, a coisa mais importante.


Portanto, mesmo que fosse uma meta-análise, que já está no topo da pirâmide de evidências, precisamos sempre correlacionar esses resultados com o contexto clínico do paciente e com a experiência que o médico acumula ao longo do acompanhamento.


Essa experiência permite observar o prognóstico a longo prazo, algo que só o médico tem.


Quando pessoas se metem na área científica que não dominam, ou não tem formação para isso, e querem dar suas opiniões, falta a elas não apenas conhecimento, mas também experiência.


Essa lacuna acaba interferindo em suas “interpretações” e, muitas vezes, leva as pessoas a tomarem decisões erradas com base nessas “interpretações” de não médicos que não têm a vivência prática. Eles acabam passando essas ideias como verdades absolutas para a população, o que pode ser perigoso e enganoso.


Portanto, é crucial seguir as diretrizes baseadas em evidências e considerar o uso do acetaminofeno apenas na menor dose eficaz pelo menor tempo possível durante a gravidez.


A ciência está do nosso lado, e precisamos combater a desinformação com fatos sólidos e integridade científica.

Aqui estão os principais pontos questionáveis:

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Acetaminophen Use During Pregnancy and Children’s Risk of Autism, ADHD, and Intellectual Disability

JAMA. 2024;331(14):1205-1214. doi:10.1001/jama.2024.3172


Masarwa et al. (2018) - Esta meta-análise avaliou o risco de TDAH e transtorno do espectro autista (TEA) em crianças expostas ao acetaminofeno durante a gestação. A análise encontrou um aumento significativo no risco de TDAH (RR=1.34) e TEA (RR=1.19) associado ao uso de acetaminofeno durante a gravidez (Masarwa et al., 2018).


Ricci et al. (2023) - Esta revisão sistemática e meta-análise investigou a exposição intrauterina ao acetaminofeno e os desfechos neurodesenvolvimentais infantis, incluindo TDAH. Concluiu-se que a exposição está associada a um risco aumentado de TDAH, mesmo após ajuste para possíveis confundidores (Ricci et al., 2023).


Alemany et al. (2021) - Este estudo colaborativo analisou seis coortes europeias e encontrou que a exposição pré-natal ao acetaminofeno estava associada a um aumento de 21% na probabilidade de desenvolver sintomas de TDAH em crianças (Alemany et al., 2021).


Khan et al. (2022) - Esta revisão sistemática explorou a relação entre o uso materno de acetaminofeno durante a gravidez e os desfechos neurodesenvolvimentais adversos, incluindo TDAH. Todos os estudos incluídos mostraram uma associação entre o uso de acetaminofeno e os desfechos listados (Khan et al., 2022).


Masarwa et al. (2020) - Este estudo avaliou o papel de possíveis vieses não mensurados na associação entre o uso de acetaminofeno durante a gravidez e o risco de TDAH, sugerindo que a associação observada poderia ser explicada por confundimento não medido (Masarwa et al., 2020).


A Systematic Review of the Link Between Autism Spectrum Disorder and Acetaminophen: A Mystery to Resolve

Cureus. 2022 Jul; 14(7): e26995.

doi: 10.7759/cureus.26995


In utero acetaminophen exposure and child neurodevelopmental outcomes: Systematic review and meta-analysis

First published: 20 March 2023

doi.org/10.1111/ppe.12963


Acetaminophen use during pregnancy and the risk of attention deficit hyperactivity disorder: A causal association or bias?

First published: 09 January 2020

doi.org/10.1111/ppe.12615

Referências:

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